Acerca de
A rapariga de olhos grandes e cabelo preto
Capítulo IX
- Amor, já estamos a ficar atrasados.
Dia de natal. Tinham combinado almoçar em casa dos pais de Ana no norte. Com o irmão e primos afastados. Dinâmicas familiares. Difíceis de perceber. Habituara-se desde tenra idade a uma família muito reduzida. Ele e a tia. A D. Maria tinha-se juntado mais tarde quando a tia fora morar em Campo de Ourique. O grande D. fora por arrasto em ruptura com os pais.
Via-se agora numa nova vida. Agradara-lhe quando Ana sugerira o almoço natalício em setembro. Agora a ideia parecia-lhe disparatada. Seria muita gente que não conhecia. Que não queria conhecer. O afastamento chamava por ele. Sentia-se mais preso que nunca.
Ana tinha feito uma pequena mala para a viagem. Metodicamente dobrou duas camisolas, pijamas e roupa interior. Revia a lista que tinha feito e colocava vistos atrás de cada item. Acondicionou as lembranças imaculadamente embrulhadas sem fita cola num outro saco. Por último, colocou um livro na mochila.
- Queres que leve um livro para ti?
- Pode ser.
Olhava-a de longe e todo o cenário lhe parecia dantesco.
Não conseguira falar com o grande D. E isso desnorteava-o. Ainda mais.
Ia para norte sem norte.
- Filha, que saudades!
A mãe recebeu-os com um sorriso rasgado. Em contraponto com o pai que o examinou de cima a baixo emitindo uma inaudível saudação.
- Venham, venham. Sentem-se e contem-me tudo.
A mãe comandava. Não sabia se por feitio ou por fraca prestação do marido.
Almoçaram, beberam café e recolheram-se um pouco no quarto para descansar. Deitou-se na cama e deixou-se ficar. Ana adormeceu a seu lado. Os primos jogavam cartas na mesa da sala. Exaltavam-se a cada jogada. O barulho era tanto que o sono não veio. Ali ficou. Parado. Novamente parado.
Jantaram, trocaram mais umas palavras, sorriu em modo 'tem de ser' e foram dormir.
- Estás estranho. O que se passa? Não gostaste da minha família?
- Estou cansado. Vamos dormir.
Fizeram o caminho de regresso a Lisboa calados. Ana lia, ele conduzia. E lembrava-se que todos os caminhos eram bons quando não se sabia para onde ir.
- Vou arrumar a mala e fazer uma sopa para o jantar.
- Vou ter com o grande D. Chego por volta das 19h.
Saiu de casa e respirou. Finalmente respirou.
- Quando a descobriste?
- Há algum tempo.
O grande D. levantou-se e foi até à cozinha. Tinha evitado aquela pergunta. Inevitável como o destino. Preparou dois cafés.
- Toma.
- Há algum tempo quando?
- Eh pá, o que é que isso interessa agora? Devia ter-te dito antes mas não disse. Agora o importante é saber o que vais fazer ou não?
- Vou chegar a casa, conversar com a Ana e vou a Paris.
Sentia-se livre. Com as rédeas da sua vida.
- Tens a morada dela no envelope.
- Mas como é que eu vou aparecer lá assim?
- Vais e ponto. Pior que a dúvida é saber que não fizeste nada.
Anuiu. O grande D. tocava no ponto. Direto, cru, sem rodeios.
Saiu revigorado.
- Cheguei.
Ana dirigiu-se ao corredor.
- Tinhas este envelope nas calças.
Esticou-lhe o envelope. Enquanto esperava por uma resposta.
- Obrigado.
Deu por si a dizer. Foi até ao quarto. Ana no seu encalço.
- Obrigado? Só tens isso a dizer?
- Abriste o envelope?
- Estava aberto.
- É um bilhete para Paris. Prenda do grande D.
- E vais sozinho?
Respirou fundo. Segurou-lhe na mão.
- Ana, preciso de falar contigo.
Olhou-o bem fundo nos olhos. E de imediato sentiu que a sua vida acabara de mudar.